Thursday 1 August 2013

Capítulo 12 - Apenas a morte é real




Uma grande e imponente abadia, sede de uma ordem conhecida como Vama Marga.
Durante muito tempo foi ligada ao Vaticano, mas pelo seu modo de agir e pelos crimes que cometeram foram expulsos da igreja, são considerados hereges.
Tomaram para si o título de Vama Marga, simbolizando o caminho que tomaram, se afastando cada vez mais de Deus, descendo cada vez mais fundo, mergulhando no abismo para ser capaz de enfrentar o mau que se esconde lá.
Estudavam e conheciam mais aos demônios e ao inferno do que a seu próprio Deus, estavam mais perto do inferno do que do paraíso.
Dezenas de crianças amontoadas em um grande pátio, todos órfãos e crianças abandonadas, novos recrutas. Já era noite, desde o alvorecer eles esperavam sob um grande frio pelo líder da abadia, aquelas pobres crianças todas confusas e com medo, sem saber por que haviam sido levadas para lá e o que o destino lhes reservava. A cada momento tinham que se mexer e sacudir para que a neve não os cobrisse, já estava na altura do joelho da maioria, alguns menores tinham a neve acima da cintura.
Quando o primeiro caiu começou um verdadeiro efeito domino, a hipotermia começava a afetar as crianças. Logo começaram a chorar, a gritar, implorar, nada resultava. De dentro da sede interna da abadia as crianças eram observadas.
No meio de tudo aquilo uma das crianças assistia a tudo sem esboçar reações, apenas se afastava quando um dos outros garotos cairia perto dele. Mesmo tão jovem ele sabia que não adiantava lutar ou se revoltar, nada pode enfrentar o destino. Depois de passar toda sua vida nas ruas, tendo que roubar para sobreviver, apanhando de outros garotos e de policiais, não era a primeira vez que ele via alguém morrer de frio. A única certeza que o pequeno Zachary tinha era a de que ninguém apareceria para ajudar, não há deus a olhar por você, há apenas o mau e a indiferença.
Com o amanhecer estava prestes a completar-se vinte e quatro que os garotos estavam lá a encarar a nevasca, neste momento a porta da abadia se abre e aparece o Bispo que cuida dela, ele era chamado de Khan.
Sua aparência, seus modos, seu tom de voz, nada lembrava um homem da igreja. Não carregava nenhuma cruz consigo, usava um manto negro com uma faixa vermelha em volta da cintura. Tinha uma grande barba e cabelos curtos e brancos, ainda parecia forte e vigoroso, não aparentando a avançada idade que já possuía.
Khan então fez um sinal e dois abades vieram, eles traziam pás e as entregaram aos garotos, eles foram ordenados a cavar um grande buraco. Aquele homem causava medo a todos, já totalmente exaustos os garotos não tiveram força para questionar ou argumentar e apenas cavaram como lhes foi ordenado. O esforço de cavar no meio de toda aquela neve e depois de um dia no frio matou mais dois garotos. Khan apenas observava a tudo sem mostrar qualquer reação.
Após o buraco estar fundo e grande o suficiente Khan ordenou que os corpos dos garotos mortos fossem todos jogados lá, de quase três dezenas de jovens agora restavam apenas seis.
Os corpos se amontoavam no buraco, então lentamente Khan se aproximou até ficar na beira da cova, recebeu de um dos abades uma garrafa, o cheiro forte já indicava o que era, mas as crianças se recusavam a acreditar, ou estavam cansadas e assustadas demais para fazer alguma coisa.
Lentamente o liquido era derramado sobre os corpos, em seguida um fósforo aceso. Em pouco tempo os garotos se tornaram se tornaram algo irreconhecível, toda vida e humanidade que um dia tiveram sumia em meio àquela fumaça mal cheirosa.
Dois garotos vomitaram diante daquilo, um que estava mais fraco desmaiou, Zachary sentia alguma coisa morrer dentro dele.
Nenhum dos seis sobreviventes nunca mais esqueceu aquele cheiro, o odor de carne humana queimando, em suas mente ainda infantis associaram aquilo ao inferno, e descobriram que podemos conhecê-lo e sofrer nele ainda estando vivos.
Quando as chamas ardiam mais fortes e o odor se tornava mais insuportável Khan começou a falar.

Nós somos o Vama Magra, seguimos o caminho da mão esquerda. A mão direita de Deus traz vida e bênçãos. A mão esquerda de Deus traz morte e maldição. – disse Khan
Ontem estes 23 garotos tinham toda a vida pela frente, vislumbravam um futuro, tinham esperança. Hoje são apenas cinzas. Do pó vieste ao pó retornará.
 Eles devem ser esquecidos, ao invés de pensar neles pensem em vocês mesmos, se perguntem por que sobreviveram. A resposta é que vocês são fortes, e eles eram fracos, é simples assim.
Neste mundo existem aqueles que são fracos que apenas sofrem e são levados pelo destino, e existem os fortes que devem moldar o mundo, fazer o destino se curvar a vontade deles, é isso que vocês são, estes testes mostraram que vocês são fortes.
Que este dia tenha ensinado duas lições a vocês, a primeira que o futuro é uma incerteza, nele sempre haverá dor e perda, a segunda é que para evitar isso vocês devem se tornar fortes.
E o mais importante, sempre haverá algo irremediável, que nunca poderão contornar ou fugir, a morte, apenas a morte é real.

Estas palavras ecoariam no ouvido daqueles garotos por todo o resto da vida deles. Após este breve discurso Khan se voltou para trás e caminhou de volta a abadia, dois abades que o acompanhavam disseram para os garotos segui-los para dentro. Com frio e fome os jovens apressadamente entraram, mas Zachary não, algo chamou a atenção dele.
Dois dos meninos estava parado na frente do buraco ainda assistindo os corpos queimar, ele parecia sentir prazer em ver aquilo, ao perceber Zachary o olhando logo saiu e foi para a abadia. O outro garoto era diferente, tinha o olhar triste, estava tão próximo que Zachary pensou que ele fosse cair ou se jogar lá.
O menino se abaixou e enfiou as mãos dentro das chamas, recolhendo algumas cinzas e jogando-as sobre o corpo, seus braços sofreram grandes queimaduras fazendo-o quase desmaiar de dor, Zachary o ajudou e o levou para dentro.
Dentro da abadia os garotos foram alimentados e ganharam novas roupas, semelhantes as que os abades usavam, e tiveram três dias para descansar e se recuperar.
Após este breve descanso intensos e duros treinamentos começaram. Havia uma imensa biblioteca na abadia, lá todos dias eles recebiam aulas sobre demonologia, historia, magia e exorcismo, haviam livros de varias tradições, não se limitando apenas a doutrina católica.
Por ser um local grande e isolado Zachary gostava de passar o tempo lá, podia ficar sozinho, o que não era difícil de qualquer forma já que a rudeza e brutalidade assustava os outros garotos que mantinham uma distância dele.
Havia apenas uma exceção, um dos meninos que não demonstrava medo diante de Zachary, na verdade o tratava como um igual. Era o jovem que ele havia salvado, o que tinha queimado os braços na fogueira, ele ainda trazia grandes ataduras nos braços que escondiam as marcas, uma vez que elas eram definitivas.
O garoto também passava muito tempo na biblioteca, anos depois Zachary se recordaria de um dos livros que ele lia, que falava sobre uma família, os Kross. Por ser o jovem mais franzino, o mais novo de todos eles, e por ter um coração mole acabava sendo o mais castigado pelos tutores e os outros jovens, mesmo assim nunca reagia.
Sempre tentava conversar com Zachary, que no começo o ignorava, mas depois de quase um ano de convívio agora o tratava melhor. Por mais que tentasse impor medo, ser o mais forte para conseguir sobreviver a tudo Zachary às vezes sentia um grande vazio, que era preenchido durante o tempo que conversava com o garoto.
Um dia o garoto levou uma surra maior que as que costumava, Zachary sabia que isso acontecia, mas pela primeira vez ele viu aquilo, acabou perdendo o controle e batendo muito nos outros garotos, só não os matou porque foi detido pelos abades.
As punições eram severas, Zachary foi levado para uma pequena sala de tortura onde foi açoitado durante duas horas, entretanto não conseguiram arrancar dele qualquer lágrima ou grito.
Nesse tempo Zachary decidiu ir a enfermaria visitar o garoto que havia queimado os braços no fogo, algo naquilo havia despertado o interesse dele. Logo que entrou na enfermaria foi visto pelo garoto que pareceu feliz em vê-lo.

Estava apenas passando por aqui e vi que você estava ai, já esta sendo tratado há dois dias, ainda esta muito mal? – perguntou Zachary
Não, já estou bem melhor, hoje mesmo eles devem me liberar. – respondeu o garoto
E os seus braços como vão ficar?
Vão ficar marcados para sempre, as queimaduras foram muito profundas. Acho que era isso mesmo o que eu queria. (a voz do garoto parecia calma e serena mesmo diante disso)
O que?
Eu não sei se você reparou, mas havia um garoto mais velho comigo quando chegamos aqui, ele era meu irmão.  Ele morreu.
Eu sinto muito. (Zachary estranhava as próprias palavras, havia vivido a vida toda na rua, aprendido a viver sozinho, se tornado duro, mas algo naquele menino fazia ele se lembrar que era humano)
Não se preocupe, eu realmente estou bem. Eu queria levar uma parte do meu irmão comigo, lembranças podem sumir com o tempo, podem se perder, mas uma marca no corpo nunca é esquecida, agora sempre me lembrarei do meu irmão por causas dessas queimaduras. (as palavras do garoto soavam de forma estranha, parecia um misto de inocência infantil e insanidade)
Isto não é justo, tudo pelo que passamos, tudo que ainda vamos sofrer. Eles nos usam como se fossemos maquinas, não somos importantes afinal, somo apenas órfãos. Eu odeio todo este mundo.
Calma, você precisa confiar, acreditar que Deus tem um plano maior, um propósito para cada um de nós.
Se Deus existisse nós não passaríamos por tudo isto. Por que alguns tem de sofrer tanto, ter uma vida tão miserável enquanto outros tem uma vida boa? (finalmente Zachary quebrava um pouco da armadura que usava, se mostrava o que era, apenas uma criança assustada, com medo, sentido todo o peso do mundo sobre si, tinha lágrimas nos olhos)
Você não acredita em Deus?
Não.
Venha comigo - o garoto se levantou e foi até a janela – você pode ver isso? (a abadia era no topo de uma grande montanha, o menino apontava para baixo, ao longe no cume eles podiam ver uma pequena cidade) Daqui de cima tudo parece tão pequeno, não podemos ver as lágrimas, ouvir o choro das pessoas lá embaixo.
O que você quer dizer?
Eu acredito que com Deus acontecesse a mesma coisa, ele nos olha lá de cima e tudo parece bem, por isso ele não ajuda. Mas também por isso ele não nos deixou sozinho, as pessoas podem cuidar umas das outras e se ajudar, é isso que Deus quer, é esse nosso propósito.
Garoto qual o seu nome? (perguntou Zachary bastante emocionado com tudo aquilo e se esforçando para não chorar)
Eu me chamo Holger.

O meu nome é Zachary e a partir de hoje nós somos irmãos, não se preocupe eu vou cuidar de você.

2 comments:

  1. gostei demais, e estou bastante curiosa com o que vai acontecer a partir de agora!

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  2. Deu uma vontade tão grande de arrancar os olhos desse Khan, ele é um grande filho da mãe! x-x
    Não imaginava que a vida do Zechary tenha sido tão dura. Mas parece que Holger conseguiu quebrar essa barreira que separava o pequeno Zachary do mundo exterior.
    Fiquei realmente surpresa com o motivo pelo qual Holger deixou que seu braço se queimasse naquelas chamas.
    Estou gostando muito dessa fic! Lerei o próximo capítulo!

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