Capítulo 100 - Ecce Cor Meum

Icelo e Rafael se encaravam, velhas memórias começavam a ser lembradas. No começo de tudo, quando Deus encarregou o arcanjo a guardar o livro da vida ele tinha um assistente, era aquele que no futuro se tornaria o demônio dos sonhos.

Um livro onde toda a historia esta contada, tudo que já foi e tudo que será, um destino inexorável que pode ser descoberto com o virar de uma pagina, é uma tentação grande demais, provavelmente nenhum humano a suportaria, assim como poucos anjos ousariam fazê-lo.

Um dia Icelo se aproveitou de uma distração de Rafael e folheou algumas paginas do livro, aquilo foi o suficiente para deixá-lo temporariamente insano, perturbado de um modo nunca visto antes, a guerra civil, todas as mortes, as perdas, o sofrimento, tudo isto foi antevisto por ele.

Toda a esperança no futuro foi perdida, ele chorou e lamentou pelo que viria a acontecer. Quando Rafael descobriu o que ele fez ficou furioso, se recusava a ouvi-lo, era um grande pecador espiar o livro, Icelo deveria ser banido para sempre.

Mas neste instante a guerra civil teve inicio, facções se formaram, lados foram escolhidos, traições se sucederam, amigos matando amigos, amizade e afeto sendo substituídos por ódio, sangue sendo derramado naquele solo sacrossanto.

Enquanto Rafael escolheu o autoexílio, Icelo decidiu que não aceitaria aquilo, não aceitaria aquele futuro, ele decidiu que seu propósito tentaria ser mudá-lo, espalhar caos naquela ordem, fazer confusão, bagunças as peças no tabuleiro com esperança que isto alterasse o modo como as coisas aconteceriam.

Ele tentou se esconder atrás da loucura, queria ver o mundo queimar ou ate mesmo destruí-lo se isso significasse mudar o destino, muitos o viam como insano, cruel, psicopata, por muito tempo ele próprio tentou se ver desse modo, mas no fim era sempre sobre tentar mudar o que já estava escrito.

Nesta sua cruzada ele teve ajuda, outros em quem confiava e a quem contou o que se aconteceria, que tentaram ser arautos do caos para lutar contra o inexorável destino, no fim todos tombaram em batalha, a exceção de um, Gremory. Icelo entendeu que havia falhado, mesmo com ele tentando interferir tudo seguiu o mesmo rumo que deveria, ele havia sido derrotado.

Durante algum tempo ele se lamentou, ele tentou salvar o mundo mas falhou, o remorso, a culpa, a vontade de nunca ter aberto aquele livro, tudo oprimia seu peito e fustigava seu coração, ele assistia Gremory se degenerar e se entregar a insanidade, ele estava sozinho.

Foi quando ele começou a estudar mais sobre a realidade, aprender sobre os humanos, então ele descobriu o que o fascinou e passou a ser sua única preocupação, os sonhos.

Ele ouvia todos dizerem que o livre-arbítrio era o maior presente que Deus havia dado ao homem, mas ele discordava, ele acreditava que o maior presente eram os sonhos, um mundo onde cada um se torna Deus, que pode o moldar aos seus desígnios, um lugar para fugir quando todo o resto desaba.

E foi então que conheceu Eurídice, aquela linda jovem que tinha sonhos tão fantásticos, mundos miraculosos, contos de fada, um mundo melhor que o atual, Icelo se apaixonou por ela sem perceber, a cada vez que ia ate os sonhos dela para expiá-la, ate que um dia ela o notou.

Talvez ele tenha sido descuidado, talvez quisesse ter sido notado, era difícil dizer, foi tudo tão inesperado ate mesmo para ele.

Mas no fim a fugaz vida humana deixou a sua amada, sem que ele nunca conseguisse dizer que a amava, todo o resto passou para o segundo plano, ele precisava vê-la de novo, fazer o que fosse preciso para vê-la uma vez mais e poder expor seus sentimentos.

Ele ate mesmo se aliou a Miguel e coletou almas para ele, mas ele nunca parou de tentar embaralhar as coisas, mexer com Lúcifer, provocar Mark, tentar despertá-lo, cada ação era uma tentativa de alterar o rumo do mundo.

Você me pede ajuda Rafael, mas no passado se recusou a me ajudar, eu sei que se atormenta com isso a cada dia, imaginando o que teria sido diferente se você se aliasse a mim, a força de um arcanjo poderia ter tornado as coisas diferentes? Se tivesse ajudado Gabriel poderia ter parado a peleja?  Nunca saberemos. – disse Icelo

– Eu acho que perdi a minha parte bondosa há muito tempo, eu não tenho mais esperanças de mudar nada, eu fui mudado, não sou quem costumava ser, talvez todo o caos e insanidade que usei por tanto tempo tenham se tornando parte da minha psique.

– Não me importo mais em salvar o mundo, acho que apenas gostaria de passar toda a eternidade nesse lugar, ao lado de Eurídice, estar ao lado dela ate o fim. Entretanto aqui estou eu, sem coragem nem para despertá-la.

Eurídice era como um manequim, a alma dela estava dormente, em uma espécie de estado de transe desde que Orphamiel a entregou para Icelo. Ele não a despertava porque tinha vergonha, sabia que ela o odiaria e se voltaria contra ele quando descobrisse o que ele havia feito para conseguir a alma dela de volta.

Por um longo tempo Icelo a encarou e acariciou seu rosto, ate que finalmente a despertou com um beijo. Ao acordar ela respondeu o beijo enquanto segurava o rosto do amado, ela chorava de felicidade por poder vê-lo de novo.

Rapidamente ele contou a ela tudo que havia acontecido, conforme contava as diversas coisas terríveis que tinha feito via a expressão no rosto dela mudar, ela não olhava para ele da mesma forma. 

Depois de terminar de contar tudo que havia feito Icelo admitiu que era um monstro, que talvez aquele por quem Eurídice se apaixonou não existisse mais, mas que agora ele tinha descoberto o que precisava fazer.

Continuava a não se importar com salvar o mundo e qual seria o destino da humanidade, talvez muitos julgassem um motivo tolo, mas no fim a motivação dele era fazer com que a mulher que amava sentisse orgulho dele, queria mostrar a ela o melhor que ele poderia ser.

Icelo aceitou a proposta de Rafael e juntos rumaram ao paraíso, Eurídice permaneceu naquela encosta, perdida em seus pensamentos, mas ao ver o último sorriso que ele havia lhe dado antes de partir, ela desejou com todo o coração que ele voltasse para ela mais uma vez.

Enquanto isso no paraíso Nathaniel segue avançando ate o pilar que representa a Fé, era um templo muito bonito, parecia com uma catedral, ele possuía bonitos vitrais formando desenhos de anjos, eles permitiam que a luz invadisse o lugar, deixando iluminado, não havia sequer uma sombra lá, estar lá trazia uma grande sensação de paz e calor ao coração.

Mas logo estes sentimentos puros foram afastados, ele encontrou a pessoa que mais queria e de quem mais desejava fugir, aquela que prometeu matá-lo da próxima vez que se vissem, sua Katherine, aquela que um dia ele amou, e que agora havia se tornado Kali estava diante dele.

Antes que pudessem trocar qualquer palavra uma terceira presença se revela para eles, vestindo uma túnica de monge ele caminha em direção a eles, não é possível sentir qualquer agressividade vinda dele, ao chegar mais perto ele retira o capuz da túnica revelando seu rosto, aquele era Haziel, o anjo guardião daquele templo.

O anjo possuía a aparência de um homem velho, com aproximadamente sessenta anos, tinha espessa barba branca, cabeços que ainda grisalhos penteados para trás, que lhe davam uma aparência não tão velha, uma expressão bastante seria, olhos profundos que pareciam ter visto a origem do universo.

Bem vindos meus caros, este é a casa de Deus. Aberta a todos aqueles com o coração aberto e dispostos a acreditar na redenção dos pecados e na salvação de sua alma. – disse Haziel

– Eu olho para vocês e vejo corações pesados, rancor, medo, duvida, arrependimentos, um ódio muito forte misturado ao que um dia foi um puro e sincero amor.

Eles olhavam surpresos para Haziel, com apenas um olhar o anjo de expressão humilde havia os lido totalmente.  

Vejo que a hostilidade da linda jovem não esta direcionada para mim, talvez devessem resolver primeiro seus problemas antes de me procurar. – disse Haziel em um tom calmo

Ele caminhou ate outra parte do templo e se sentou para meditar.

Katherine, por favor, deixe-me explicar o que aconteceu. Tudo isso, já faz muito tempo desde que as coisas estão fora de controle, eu não matei o seu pai, não matei Lúcifer. Foi decisão dele, ele se sacrificou para que você pudesse viver. Vamos fale comigo, me resposta. – disse Nathaniel

Nenhuma palavra veio dela, e ele sabia o que aquilo queria dizer, que as últimas palavras dela ainda eram o que valia. Ela não o perdoou, ela queria vingança por Lúcifer.

Os olhos dela estão vermelhos, é possível ver todo o ódio nos olhos dela, ela corre em direção a ele, na palma da mão uma grande concentração de energia que ela acerta no peito de Nathaniel lançando-o para longe, fazendo-o chocar-se contra a parede do templo.

A velocidade dela é impressionante, assim que as costas dele se chocam com a parede ela já esta ao lado dele para chutar seu estomago, ele cai de joelhos. Lentamente ela se aproxima dele e passa a mão pela boca dele limpando o sangue. Ela segura a cabeça dele e aproxima seu rosto do dele como se fosse o beijar, mas então grita para que ele morra.

Kali dispara outra esfera de energia em direção ao rosto dele, mas desta vez Nathaniel segura a mão dela desviando o ataque no último momento, ele começa a apertar o pulso dela.

Então finalmente vai reagir e começar a lutar? – questiona Kali

Não, eu não vou atacá-la. Exatamente neste dia, você se lembra? Há dez meses, quando eu disse pela primeira vez que te amava. Amor não é um sentimento, é uma promessa. Uma promessa de nunca machucar a outra pessoa. – disse Nathaniel

– Então você é péssimo em manter promessas. Não vai acabar ate um de nós destruir o outro.

– Não sei como, mas vou consertar isso, vou fazer você se lembrar de quem costumava ser, eu vou salvá-la de toda essa escuridão. Eu não ligo se você me odeia, eu ainda vejo por trás de tudo isso a mesma garota por quem me apaixonei, e eu nunca vou desistir dela.

Nesse momento Nathaniel é golpeado pelas costas, uma esfera de luz cortante perfura seu peito.