Sunday 24 August 2014

Capítulo 67 - Uma ária de tristeza




Com dificuldade Zachary levantava-se, depois de ser atirado contra o solo e despertar naquele lugar. A primeira coisa que lhe vinha a mente era pensar sobre Simone, Dante e Mark. Em como cada um deles estaria neste momento.

Tinha muito pena em ver aqueles jovens se arriscando desse modo, eles ainda possuíam tanto para viver, um futuro em potencial, que podia acabar naquele lugar, sendo estraçalhados no inferno.

Era frustrante para ele saber que estava diante da batalha mais importante de todas, mas justamente quando seu corpo mais se curvava pelo peso do tempo. Ele não era nem sombra do homem que tinha sido no passado, a cada dia sentia-se mais fraco. A simples queda que tinha tido ao atravessar o portal e cair naquele circulo já o tinha deixado com dores.

O tempo é inexorável, ele sabia disso, não podia lutar contra o inevitável, sentia-se como uma velha folha, a única que insistia em resistir, que tinha passado pelo outono e agora era castigada pela dureza do inverno. Logo ele cairia e seria engolido pela neve.

O último de sua geração tendo a responsabilidade de liderar um bando de crianças para salvar o mundo, ele velho demais, os outros jovens demais.

Lembrava-se da profecia de Khan, do seu passado na Vama Marga, de que ele deveria ser aquele que guiaria o escolhido. Ele pensou a respeito de Mark e sorriu.

Enquanto caminhava por um longo caminho pedregoso começou a ofegar, sentia-se cansado, uma forte dor no peito o oprimia, sentia algo no seu braço esquerdo. Rapidamente pegou no bolso da sua calça um frasco com remédios, os estava tomando desde que tinha tido o incidente com Icelo.

Aquilo na verdade o havia salvado de certo modo, Zachary sempre tinha evitado ir a hospitais, mesmo sentido dores e desconforto, não queria deixar Mark sozinho, mas quando foi atacado pelo demônio dos sonhos e foi internado os médicos o avaliaram e descobriram que ele tinha graves problemas cardíacos.

Ele não se surpreendeu ao descobrir isso, sim ele tinha tido um trabalho bem estressante ao longo dos últimos quarenta anos, exorcizar demônios com certeza o levava ao máximo, a pressão de cada batalha psicológica, isso foi o vergando ao longo dos anos, agora não faltava muito para ele quebrar.

A verdade é que ele questionava se devia ou não estar lá, por alguns momentos ate chegou a pensar em pedir para Strauss guia-los no inferno ao invés dele, mas as coisas saíram de modo inesperado, agora só restava ele, sempre aquele que sobrevivia, que tinha de enterrar as pessoas. Às vezes é difícil ser aquele que fica para trás, que fica sozinho. Ser velho é já ter perdido muitas coisas ...

Zachary lutava para afastar estes pensamentos, apertava o frasco de remédios na mão, lembrava-se de que após tomá-los sentia sonolento, algo que não podia se dar ao luxo de ficar neste momento, precisava estar totalmente focado e concentrado para encarar a próxima luta.

Após suspirar pesadamente ele toma sua decisão. Atira para longe os remédios, para onde esta indo não vai mais precisar deles.

Seguiu caminhando por algum tempo ate sentir uma mudança de temperatura, aos poucos o calor que sufocava e asfixiava estava desaparecendo, ele começava a sentir frio.

Quanto mais avançava mais sentia a temperatura cair, ate que finalmente olhou para o céu e viu flocos de neve caindo, estendendo sua mão para segurar um deles notou algo. Aquilo não era neve, eram lágrimas.
Avançando mais um pouco finalmente chegou ao que parecia ser um lago gigantesco, que estava congelado. De modo cauteloso colocou um pé de cada vez, caminhava com parcimônia sempre verificando se o gelo resistiria.

O vento o açoitava, fazia a sensação térmica ser ainda menor do que realmente era, sentia que se ficasse lá por muito mais tempo começaria a sentir os efeitos da baixa temperatura, já sentia seus dedos ficando dormentes.

Mas algo chamou sua intenção, ele começou a escutar uma bela melodia, era uma música extremamente triste, sentia vontade de chorar ao escutá-la, era como o lamento de milhares de vidas, uma sinfonia feita por todas as palavras não ditas, por todas as coisas que as pessoas gostariam de não ter dito, por coisas que foram quebradas e não podem ser consertadas.

Seguindo o som ele chegou a um grande castelo de gelo que parecia estar localizado no centro do lago congelado. Dois enormes gárgulas de gelo guardavam a entrada, quando Zachary tentou avançar eles se mexeram atacando-o, por pouco escapou da primeira investida.

Zachary estava em grande dificuldade, mesmo sendo pesados eles ainda eram rápidos, mas ele possuía uma vantagem, a experiência, tirando os gárgulas da entrada do castelo onde tinha neve e levando para o gelo fino sobre a superfície do lago, fazendo-os escorregar e ter dificuldades em se mover. Mas logo eles começaram a voar para escapar do gelo.

Entretanto foi este movimento que decidiu a batalha, quando eles começaram a voar passaram a atacar Zachary dando voos rasantes, mas ele esquivava-se com facilidade, parecia conseguir prever cada um dos ataques antes que eles viessem.

Os gárgulas chocavam-se violentamente contra a superfície do lago que resistia, mas começava a mostrar rachaduras, Zachary esperou pelo momento certo e deu um poderoso soco no gelo, fazendo-o se despedaçar, de modo que os monstros caíram dentro do lago, e devido ao seu enorme peso eles começaram a afundar.

Ao olhar para a água do lago Zachary ficou horrorizado, pode ver então o que se escondia debaixo do gelo, centenas de corpos, almas condenadas que ainda tinham um pouco de discernimento, que ficavam batendo no gelo tentando escapar, mas não podiam, sofriam sentindo seu corpo congelar, e quando finalmente paravam de se debater afundavam.      

Pelo buraco aberto por Zachary alguns deles tentavam escapar, mas em meio a confusão eles se batiam e atrapalhavam uns aos outros, como animais desesperados tentavam escapar, mas no fim nenhum deles pode sair, logo o buraco se fechou de novo, prendendo a todos eles.

Sem muito tempo para pensar a respeito daquelas almas amaldiçoadas Zachary decidiu avançar seguindo seu próprio caminho, pensando se o seu fim seria se juntar àquelas pessoas.

Agora sem os gárgulas na entrada ele pode avançar e abrir uma grande porta de madeira que era a entrada do castelo de gelo. Conforme adentrava o lugar a música ficava mais alta, parecia estar o guiando. A entrada dava para um grande salão, e logo adiante uma grande escadaria que conduzia ao segundo andar. Ainda seguindo a musica ele subiu as escadas ate chegar a um quarto de onde parecia vir o som.

Abrindo a porta ele se deparou com uma belíssima mulher, usava um bonito vestido preto que realçava as curvas do seu corpo, tinha longos cabelos, negros como as asas de um corvo, um rosto pálido, gélido, olhos verdes que pareciam esmeraldas, e uma sombra vermelha que os realçava. Ela tocava uma grande harpa, era a responsável por aquela melodia tão triste que o tinha guiado através daquele inferno de gelo.

Como derrotou os gárgulas? – ela indagou
Pela forma como se moviam eu percebi que eles estavam sendo controlados, mas ainda era difícil encontrar um padrão nos movimentos deles, por isso os forcei e eles tiveram que usar as asas e voar. Foi quando notei uma pequena mudança de andamento na música, descobri que era assim que você os controlava. – disse Zachary  
– Com uma única mudança conseguiu notar a diferença? Tem bons ouvidos Zachary.
– Sim, o som de harpas sempre foi dos meus preferidos, Tchaikovsky e a cadência de harpa no Lago dos Cisnes, o concerto para harpa de Handel, são obras belíssimas. Mas ouvi-la tocar foi uma experiência diferente, me fez entender porque se referem à música como algo divino.
– Obrigados pelos elogios tão gentis, é uma pena não podermos conversar por mais tempo, sinto que gostaria da sua companhia, mas já sinto sua intenção assassina crescendo contra mim.
– Uma bela música e uma bela mulher, acrescente um bom vinho e tem a perdição de qualquer homem. Tenho de atacá-la enquanto consigo, antes de ficar ainda mais envolvido por essa melodia hipnotizante.

Zachary tentava demonstrar segurança, parecer calmo, mas na verdade analisava todo o ambiente, tentava calcular estratégias, modos de atacar aquele oponente. Nos momentos que teve com Icelo eles conversaram e ele o perguntou sobre o que ele sabia de cada um dos círculos e seus guardiões. Ele sabia quem estava a sua frente e onde estava.

Era o nono círculo infernal, aquele destinado aos condenados por traição, e seu guardião era o anjo caído chamado Sitri.

Sabe por que esta aqui? – perguntou Sitri
Acho que sim, pelo sentimento de culpa que carrego, pelo meu egocentrismo de achar que devo salvar a todos, e quando falho nisso me afundo em autopiedade e me isolo das outras pessoas. – respondeu Zachary
– Não precisa tentar racionalizar tudo, você melhor do que ninguém deveria saber que sentimentos estão além da cognoscível. Isso é sobre como você sente, sobre como as outras pessoas se sentem com relação a você.

Sitri atacava o ponto fraco de Zachary, as memórias que tinha por ter perdido seu irmão Holger, quando falhou com sua família e sua esposa foi morta por um demônio, quando não conseguiu escolher entre Dante e Christian e viu ambos sendo tragados para o inferno.

Por mais que tentasse compreender aquilo de modo racional, que soubesse que não teve culpa, que não havia nada que ele pudesse fazer a respeito, nada disso importava, ele tinha perdido pessoas que amava, e não conseguia se perdoar por isso.


E no fim é isso que importa, a forma como nossas ações e omissões impactam em nós, as pessoas que amamos são o espelho através do qual vemos isso, através do que somos julgados e condenados. E era chegada a hora do julgamento de Zachary. 

2 comments:

  1. Muito bom o capítulo, embora não tenha tido muita ação sem ser o Zachary contra as gargulas, a melhor parte foi no final ao encontrar a anjo caído Sitri, ele sempre se culpabilizou muito pelos seus falhanços, agora é hora de os enfrentar.

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  2. De início, apesar da vasta experiência de Zachary, pensei que ele teria dificuldades contra Sitri devido à idade um pouco mais avançada. Se ele luta assim agora, imagina então quando era jovem! A luta começou como algo mais tático e depois tomou rumos mais violentos XD Bom, ele mostra que está lá é para matar Sitri mesmo, tanto que ela ficou até meio que com um pé atrás, diferente como foram os outros anjos caídos com os membros do grupo.
    É muito interessante essa forma de Zachary, já que ele se mostra um homem calmo e prudente... Mas se for levar em consideração o passado dele, na época de Holger, faz todo o sentido.

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