Capítulo 66 - A verdadeira dor

Asmodeus perguntava o nome de Dante, ele queria se lembrar do nome desse humano, aquele que o tinha feito lutar de modo sério pela primeira vez desde a guerra civil no paraíso.

Para aqueles que têm a vida eterna o tempo se torna algo relativo, anos passam a ser contados como minutos, dias e meses são coisas insignificantes. Asmodeus não se lembrava do rosto ou dos milhares de humanos que já tinha torturado ou enfrentado naquela arena, não eram diferentes de formigas.

Isso irritava Dante, saber que Asmodeus não o reconhecia mesmo o tendo torturado tanto, ele tinha prometido para si mesmo que faria o anjo caído se lembrar, que mesmo que morresse deixaria sua marca neste anjo para que ele nunca esquecesse que um dia existiram humanos, e que eles desafiaram as divindades.

Olhando para dentro de si mesmo Dante via que existia apenas um grande ódio, que tinha vindo para este inferno de violência por odiar tanto a si mesmo e as criaturas celestes que tratam humanos como brinquedos, que lhe tiraram sua família, que destruíram sua vida, que o fizeram se tornar um monstro. Era o momento de por um fim nisto.

Concentrando mais sua energia espiritual no braço esquerdo de anjo Dante fazia-o brilhar, ao mesmo tempo em que a necrose em seu corpo parecia se expandir. Asmodeus faz o mesmo, começa a aumentar sua energia, as paredes da prisão racham e tremem, grandes blocos de pedra desabam, pessoas gritam. Icelo que demonstrava tédio fica sério e passa a observar a luta com atenção.

Asmodeus avança contra Dante com um instinto assassino, como um predador avançando contra a presa, desejo por sangue, dilacerar a presa. O corpo dele fica tenso, os músculos aumentam, ele lutaria com foca máxima.

Eles se encontram no centro da arena e começam a desferir ataques, os golpes que erram projetam um impacto tão grande que destroem aquilo que acertam. Poderosos socos que jogam a cabeça de Dante para trás, ele acerta golpes, mas os seus parecem não ser mais tão efetivos em Asmodeus.

Enquanto continuam a trocar golpes Dante sente seu corpo se despedaçar, os músculos se rasgando, ossos se partindo, ele não aguentaria aquilo por muito mais tempo, começava a perder a consciência, mesmo assim seu corpo reagia instintivamente, tentando esquivar e ainda acertar.

Mas o corpo de Dante não suportou mais, todo o dano acumulado começou a aparecer, então naquele instante em que os braços dele cansaram e ele não conseguiu desferir o próximo golpe veio o ataque de Asmodeus.

O anjo caído viu o momento de hesitação de seu adversário e o aproveitou. Dezenas de golpes foram dados, Dante vomitava sangue, cada um dos golpes tinha força o suficiente para matar. Asmodeus então o segurou pelo pescoço e o ergueu, olhou em seus olhos e viu que a vida os deixava, mas mesmo assim aquele humano o desafiava, cuspindo sangue em seu rosto. 

O anjo limpou o sangue de sua face e em seguida atirou Dante contra uma das paredes, antes mesmo dele se chocar contra ela, Asmodeus o acerta com uma sequencia de chutes, ate o prender na parede segurando seu pescoço com o pé, no momento em que o solta o ataca com vários socos, cravando-o na parede com a força dos ataques.

Os golpes eram tão poderosos que o cravavam na parede, fazendo-a rachar, por fim Asmodeus deu um soco que fez com que a parede desabasse sobre o corpo de Dante, aquela seria a sepultura dele.

Icelo baixou a cabeça, parecia decepcionado. Asmodeus o chamou para cumprir sua parte do acordo, agora era a vez dele o enfrentar.

Contudo, Icelo permanecia sentado, como se esperasse por algo, se recusava a começar a lutar porque Asmodeus não tinha cumprido sua parte, não tinha terminado a luta. Foi quando ele olhou pra trás e viu que as pedras tremiam, mesmo esmagado sobre aquela parede Dante continuava a lutar.

O corpo dele o pedia para que desistisse, para que se recusasse a continuar, já tinha sofrido tanto, já havia tentando, ninguém poderia dizer que tinha desistido fácil, ele tinha feito o máximo, mas não era o suficiente, um humano era incapaz de vencer um anjo.

Ele sabia que a morte não significaria descanso ou fim dos sofrimentos, pelo contrário, ficasse sua alma com Icelo ou permanecesse no inferno ele sabia que sofreria muito mais, mas se sentia cansado, fraco, não queria mais lutar.

Mas ele começou a lembrar da dor que sentia, a pior dor que já tinha sentido, não era uma dor física, era uma dor no seu coração, o sentimento de ter falhado com seu pai, de ter perdido sua mãe, vítima inocente de uma guerra entre anjos, que destruiu sua família e sua vida.

E para estes anjos isso não significava nada, eles nem se lembravam, para eles cada humano era insignificante. Sentir-se impotente, ser incapaz de proteger aqueles que ama, perder tudo que é precioso, ver o seu coração secar e ser preenchido pelo vazio, esta é a verdadeira dor, comparado com isso, dor física não quer dizer nada.

Nesse momento ele estava decidido, não terminaria daquela forma, ele derrotaria aquele anjo caído de qualquer modo.

Sua alma começava a se elevar, sua energia espiritual chegou ao máximo, destruir seu próprio corpo no processo não o importava mais, ele tinha encontrado algo pelo que valia a pena sacrificar a vida.

As rochas que cobriam seu corpo foram jogadas longe, Dante se levanta. Enquanto Asmodeus estava surpreso em ver aquele humano ainda vivo baixou a guarda por um momento, o suficiente para ser acertado por um golpe no rosto, desta vez é o anjo que é atirado longe.

Dante caminha e o chão ao seu redor afunda, uma aura azul envolve todo o seu corpo. O anjo esta caído, tenta se levantar, mas suas pernas tremem, ele vomita sangue, todo o dano acumulado começa a ser sentido.

Asmodeus perde a calma, começa a gritar, esta enfurecido, tenta atacar Dante que começa a esquivar dos ataques, ate que para um deles, segura o soco com a mão, o anjo range os dentes de raiva, esta se sentindo humilhado.

Os dois se encaram pela última vez e fazem suas energias chegarem ao ápice, uma grande onda azul surge por trás de Dante, e uma vermelha por trás de Asmodeus, quando elas colidem a prisão inteira treme, mais do que isso, todo o sétimo círculo infernal sente o abalo. As duas energias tentam superar-se, um impasse que dura segundos eternos, ate que Asmodeus cede e é engolido por uma onda de energia azul.

Ambos caem em seguida, uma terrível luta chega ao fim, vários dos condenados tentaram aproveitar o momento para atacar o corpo inerte de Asmodeus, mas foram detidos por Icelo, que os prendeu em uma ilusão que os fez imaginar uma saída da prisão, guiando-os realmente para fora, mas para se afogarem no lago de sangue que cercava o lugar.

Icelo observava o corpo de Asmodeus e isso o fazia se lembrar do passado, de quando estavam todos no céu, quando ainda tinham a Deus.

Memórias de quando Asmodeus, que sempre foi um dos mais hábeis em combate, treinava outros anjos, ensinando-os a lutar, para algum tempo depois os ver usar estas técnicas para matarem-se uns aos outros.

Quando foi com Lúcifer para o inferno Asmodeus se torturou por séculos, mas isso não aliviava a sua dor, foi então que ele descobriu o que a aliviava, mesmo que por pouco tempo, torturar outras pessoas.

Os pensamentos de Icelo foram interrompidos por Asmodeus que estava quase morto, mas havia recobrado um pouco da consciência.

Vai cumprir agora a sua parte no acordo? – perguntou Asmodeus

Sim, meu amigo, agora vou deixá-lo sonhando para sempre. – disse Icelo  

Este era o acordo que Icelo tinha feito com Asmodeus no passado, para que ele libertasse Dante. Icelo disse que haveria um sinal, uma grande confusão no inferno e então no meio disso Dante seria libertado.

O demônio dos sonhos sabia o que o coração de Asmodeus mais desejava, que as coisas nunca tivessem mudado, que tudo voltasse a ser como era no passado, quando os anjos estavam unidos assistindo junto a Deus. Então ele o prometeu que poderia fazer isto, que tinha aprendido a conduzir sonhos em anjos, algo que originalmente eles não faziam.

Icelo prometeu para Asmodeus um sonho que durasse para sempre, onde ele poderia reviver os dias antigos, onde estava no paraíso, antes da guerra, quando ainda podia sentir a Deus junto dele.

Obviamente aquilo tudo era mentira, anjos não podem sonhar, nem mesmo Icelo que estuda isso há milênios é capaz disso, ele é apenas um parasita de sonhos humanos, ao mesmo tempo em que usa este espaço para se esconder dos anjos que o perseguem.

Se tinha feito aquilo apenas para se aproveitar de alguém desesperado e poder o manipular, ou se para dar um pouco de esperança a alguém que não tinha nada além de dor e vazio que transformava em tortura, talvez nem o próprio Icelo soubesse com certeza, ou apenas evitasse pensar nisso.

O fim de Asmodeus seria se desmanchar e virar poeira no inferno, voltar ao nada. Mas antes disso Icelo ainda tinha um último uso para ele, o ritual que tinha feito antes tinha outra serventia, ele fez um corte no pulso do anjo caído e o sangue dele começou a correr em direção a Dante, ele usaria sangue do anjo para curar o humano, que morreria em razão dos ferimentos.

Depois Icelo o carregou nos braços para fora da prisão, e em seguida deu um forte golpe contra a parede, fazendo todo o prédio desabar, aquela seria a sepultura de Asmodeus, no final a única coisa que Icelo pôde fazer por ele.

O demônio dos sonhos deixou Dante no chão, ele tinha febre e convulsionava, seu corpo ainda estava tentando se adaptar ao sangue de anjo. Icelo o deixou lá e partiu, agora tinha algo que ele precisava fazer.