Capítulo 88 - A resposta que não pude dar

Finalmente ele estava completando o acordo feito há muito tempo com Orphamiel,entregando-lhe quinhentos milhões de almas, que havia levado mais de cinco milênios para reunir.

Orphamiel mostrava-se surpreso, quando no passado havia sido procurado por Icelo para oferecer este tipo de acordo ele ficou receoso que fosse alguma armadilha ou algo do tipo, afinal aquele era o anjo menos confiável que se poderia imaginar, Miguel nunca aceitaria ou aprovaria um acordo deste tipo, por isso foi preciso esconder isto, apenas ele e alguns poucos anjos que eram leais sabiam disso.

No passado Icelo havia oferecido uma troca, ele daria qualquer coisa em troca de uma alma especifica que queria recuperar, desconfiado e querendo ganhar tempo para estudar esta alma e descobrir se tinha algo de especial ou algum segredo, algo que justificasse todo o interesse do demônio dos sonhos Orphamiel fez um grande pedido, quinhentos milhões de almas.

Contudo, por mais que pesquisasse e procurasse algo de diferente aquela era uma alma completamente comum e ordinária, não havia nada.

Poderia pelo menos me dizer por que a quer tanto? – perguntou Orphamiel

Nosso acordo não falava que eu teria que te dar respostas. – respondeu Icelo

– Quero apenas saber pelo que serei castigado no futuro quando Miguel descobrir sobre isso.

– Acho que a única coisa de que você poderia ser culpado é de ter pedido tão pouco, apenas meio bilhão, se tivesse me pedido todas elas eu daria.

– Pela sua expressão parece ser verdade, ver tanta determinação me da vontade de mudar um pouco os termos do nosso acordo.

– Não tente me enganar, se prometo que destruirei todo este maldito lugar, banirei as almas que tenho para lugares onde ficaram perdidas para sempre, inalcançáveis para vocês.

– Entendi, era só uma piada, não leve a tão sério, achei que logo você tivesse mais senso de humor.

Orphamiel disse aquilo para testar a reação de Icelo, que diferente do habitual desta vez mostrava-se mais passional e agressivo, ele sabia que se tentasse enganá-lo ele responderia imediatamente, ele não viria ao território inimigo despreparado, devia ter planos de contingência, a batalha contra Lúcifer se aproximava, não seria inteligente perder tempo e desperdiçar força numa luta evitável.

Que seja Icelo, aqui esta a alma que você me pediu, a mulher que em vida foi chamada de Eurídice. – disse Orphamiel

Com esforço Icelo se controlava, não podia demonstrar emoções e fraquezas, ele estava tão perto, era difícil afastar as lembranças nostálgicas que vinham numa torrente de imagens e memórias.

Icelo sempre havia sido um anjo diferente dos demais, ele não se importava com Deus ou com o papel que deveria desempenhar, sempre que podia ele fugia de suas responsabilidades, ele preferia irritar os outros, as brincadeiras que fazia eram a única coisa que o tiravam do tédio que sentia.

Contar a um anjo que o outro tinha feito algo de errado, dizer a outro que agradaria a Deus se fizesse tal coisa, suas manipulações frequentemente faziam os outros anjos brigarem entre si. Era apenas um grande jogo para ele.

Entretanto, quando Deus morreu e a guerra civil começou, ele viu a possibilidade de levar isto para outro nível.

Os anjos alinharam-se em facções de acordo com suas ideologias e com o que achavam correto, outros escolheram lados por promessas de algo em troca ou por sentimentos ocultos, mas não ele. Icelo queria apenas ver o caos que resultaria daquilo, ele achava divertido ver como eles reagiam quando as coisas estavam descontroladas.

Tendo propostas de ambos os lados Icelo usou isto a seu favor, atuava como agente triplo, espionando e atuando de modo a enganar ambos. Destroçava planos e estratégias para ver como eles reagiriam a isso. Uma ofensiva cuidadosamente planejada falhando no momento da execução, era como ver formigas atordoadas quando se inunda um formigueiro.

Quando Gabriel morreu e aconteceu a trégua foi chegado o momento de escolher definitivamente um lado, Icelo escolheu seguir para o inferno com Lúcifer, sabia que lá teria mais liberdade e poderia agir mais livremente.  

Sempre existiram muitos humanos ambiciosos, sedentos por poder, dispostos a qualquer acordo para ter o que queriam, dinheiro, poder, amor, tudo podia valer sua própria alma. Icelo era habilidoso em fazer estas negociações, em pouco tempo já tinha conseguido centenas de almas.

Igualmente divertido além da parte da sedução, de usar os desejos mais profundos do coração de cada um contra eles mesmos, era cobrar a dívida, buscar as almas humanas e levá-las ao inferno, geralmente eles imploravam, choravam, pediam misericórdia, tentavam barganhar oferecendo as almas da sua descendência, mas uma vez um humano fez algo diferente.

Um homem que havia vendido a alma em troca de poder, ele era um mago. Quando a hora em que seria cobrado finalmente chegou ele fugiu, se refugiu em um lugar onde pensou estar livre de anjos e demônios, o mundo dos sonhos, na dimensão astral.

Contudo, o contrato que ele assinou com Icelo deixava sua alma presa, era como uma bussola, não importava para onde ele fosse seria possível segui-lo.

Com extrema dificuldade Icelo conseguiu segui-lo ate aquele mundo, mas ele o rejeitava, o anjo caído sangrava pelo nariz e ouvidos só por estar naquele lugar. Ele encontrou o mago e o ofereceu um novo acordo, deixaria a alma dele em paz em troca se ele mostrasse mais daquele mundo.

É claro que o mago pensou e ponderou a respeito daquilo, ensinar os segredos do mundo dos sonhos a um anjo caído, os riscos daquilo, o que ele seria capaz de fazer com tal poder, havia várias coisas a serem consideradas, mas no final o egoísmo do instinto de sobrevivência prevaleceu, ele não se importava com o que iria acontecer ao resto do mundo se tivesse sua alma livre do inferno.

Com uma rapidez assustadora Icelo aprendeu tudo que o mago poderia ensinar, como fazer parte daquele lugar, uma forma de permanecer por mais tempo em um lugar que é por sua natureza transitório, as pessoas não acordam com o despertar depois de uma noite de sono, elas acordam porque são expulsas do reino dos sonhos.

Embora fosse antinatural Icelo aprendeu a dominar aquele lugar, naquele mundo ele vislumbrou um reino só seu, onde não teria mais que se curvar diante de Lúcifer e Miguel, com aquilo ele se via capaz de no futuro derrubar a ambos.

Com o tempo ele descobriu como roubar almas através dos sonhos, ele entrava nos sonhos das pessoas, às vezes por curiosidade, outras apenas para se divertir dando a elas alguns pesadelos que abalariam sua sanidade para sempre. Mas havia outro fator nisso, conforme ele foi ensinado pelo mago, o reino dos sonhos tem uma série de regras próprias, ele é um lugar que existe para satisfazer desejos das pessoas, para mostrar a elas o que se oculta no fundo de seus corações.

Icelo não tinha um coração como de um humano, ele não conhecia quantos tipos de sentimentos diferentes podem brotar do solo da alma humana, para permanecer naquele lugar era preciso ter um domínio sobre as emoções. Nos sonhos das pessoas ele aprendia sobre emoções. Descobrir como amor se tornava ódio e como isso retornava em vingança, como traição virava arrependimento e presentes se tornavam expiação.

Cada emoção representando uma cor, formando um grande quadro expressionista que refletia a alma humana.

Mas tudo mudou naquele dia, quando ele conheceu Eurídice. Viajando entre diferentes sonhos ele encontrou uma jovem grega, isso foi há quase cinco mil anos. Os sonhos dela eram diferentes dos demais.

Ela era uma jovem escritora de peças, nos sonhos ela criava mundos mágicos, lugares de beleza e fantasia, poesia em movimento, historias com final feliz. De alguma forma aquele mundo que existia nos sonhos dela o atraia, ele queria ver de novo.

Noite após noite ele retornava aos sonhos dela, ele começou a perceber as nuances, saber quando ela estava triste ou feliz. Ate que um dia ela não sonhou, ela estava sem esperanças, desiludida, parecia ter deixado de acreditar em sonhos.      

O que aconteceu em seguida foi algo que ele nunca imaginou, que ele não seria capaz de fazer, uma humana não significava nada, se ela parou de ser interessante ele devia apenas abandoná-la, mas ele não conseguiu, ele precisava fazê-la sonhar de novo.

Na noite seguinte ele se revelou a ela nos sonhos, a principio ela não ligou, achou que fosse apenas outra personagem do sonho, algo que a mente dela havia criado, mas aquilo continuou, por meses seguidos Icelo a visitava todas as noites e a fazia sorrir com historias e contos. Pela primeira vez ele quis salvar uma alma, ele queria pegar algo quebrado e tornar inteiro de novo.  

Todas as noites a partir daí Icelo visitava os sonhos de Eurídice, passavam a noite juntos e se separavam ao amanhecer, ele ouvia as novas historias dela, cada vez elas se tornavam melhores, mas um dia ela disse algo que ele não esperava, disse que o amava, e perguntou se ele sentia o mesmo. Ele não foi capaz de responder.

Aquilo era ridículo, patético, ele era Icelo, o anjo que tinha sido capaz de penetrar e dominar o mundo dos sonhos, que tinha enganado Lúcifer e Miguel, que tinha seus próprios planos para espalhar o caos pelo mundo, mas ao invés disso ele tinha passado tanto tempo junto de uma humana, era preciso parar de perder tempo com isto.

Mas a imagem dela o assombrava constantemente, ele não conseguia fechar os olhos sem imaginar o sorriso de Eurídice, ele começava a achar que o resto do mundo, que conquistá-lo não teria o mesmo valor se não pudesse ter ela ao seu lado. No final ele tinha obtido sua resposta, também a amava.  

Contudo, não houve tempo para Icelo vê-la novamente, para um ser imortal o modo como o tempo é percebido é totalmente diferente de como é para os humanos normais, Eurídice já havia morrido, ele demorou demais.

Não importava como ou o que tivesse de fazer, ele não poderia aceitar aquilo, ele precisava vê-la novamente, nem que fosse apenas uma vez, por um instante, ele precisava dar a sua resposta. Para isto ele fez um acordo com Orphamiel, que aceitou trocar a alma dela, e agora Icelo poderia finalmente dar a resposta que não pôde no passado.

Eurídice, eu te amo. – disse Icelo